Márcia Maria Silva Lopes de Carvalho
Psicóloga, Doutora em Psicologia Social, especialista em famílias formadas por adoção, escritora, Diretora da Sociedade Civil Quintal de Ana, membro da CODAJIC-BRASIL
drmarcialopes@dr-mauricio-a-scarpello
Como podemos lidar com história de vida do nosso filho, que veio de outro sistema familiar e com experiência de vida tão diferente?
A resposta a essa pergunta precisa ser dividida em dois tempos:
1 – se estamos falando de adoção de bebês e de crianças muito pequenas, ou;
2 – se falamos de adoções tardias – de crianças e adolescentes entre 9 e 15 anos.
Ressalte-se que a adoção no Brasil é permitida até a véspera do aniversário de 18 anos.
Em ambos os casos, no entanto, estamos falando da formação de uma identidade. Só podemos formar nossa identidade a partir do olhar do outro, pois o que somos na nossa vida interior é o correlato da vida interior das pessoas que nos rodeiam, a multiplicidade de papéis que cada uma delas assume em relação às outras. Essa é uma das características que diferenciam a espécie humana das outras espécies, então o si mesmo é o produto dos outros que, por minha vez, eu produzo.
O efeito identificatório, ou seja, a formação de identidade, se dá também através da palavra, não se produz de imediato e nem é para sempre, salvo em algumas exceções traumáticas como abrigamento, surto psicótico e angústias extremas que causam o rompimento traumático de laços sociais, como guerras, catástrofes naturais e pandemias. O trajeto identificatório se localiza em todo indivíduo imerso em uma cultura. Esse trajeto inclui tempo e lugar e acomoda a subjetividade. Fica claro, então, que a nossa identidade depende de um discurso que vem de outro indivíduo significativo para nós, em um determinado tempo e lugar, que ainda sofre mudanças constantes.
A identidade opera como um sistema em contínua evolução. Não é uma representação de si, de uma vez e para sempre, mas sim um sistema aberto que interage com o meio circundante e está sujeita a uma constante reconstrução.
A crianças pequenas, podemos contar a verdade da adoção de forma lúdica, por exemplo: No livro A Historinha Bonitinha de Maria Estrelinha “…Um dia dona Lua se encontra com o Sr. Sol e ele lhe diz que a estrelinha de dona Estrela estava na barriguinha de outra estrela em uma constelação bem longe dali…”
“…Isso é mais comum que a senhora pensa dona Lua e em geral ocorre com as estrelinhas mais especiais e de brilho mais intenso…”
Nessa história infantil, de forma lúdica, é colocada a importância dessa criança no seio desse novo sistema familiar em formação. O lúdico facilita então aos pais adotivos e à criança adotada a adaptação tão necessária.
Caso a criança queira contar sua experiência vivida em sua família de origem, nas ruas, ou na instituição de acolhimento faz-se importante ouvir, sem interromper, e depois garantir com palavras ou gestos que ela está segura e está em sua família. Se a família perceber que esse passado causa mal estar à criança no presente, podendo dificultar o futuro, é interessante procurar um profissional habilitado e os grupos de apoio a adoção. Alerto ainda sobre o perigo de se fazer quaisquer julgamentos, primeiro, em respeito à ancestralidade de nossos filhos; depois, porque, como já dito acima, a identidade opera como um sistema em contínua evolução, assim, a cada vez que evocamos uma memória, ela nos chega com as impressões trazidas pelo tempo e lugar onde estamos, podendo se mostrar, naquele momento, diferente do que foi a real experiência vivida.
Em relação às adoções tardias, nosso segundo tópico, o acolhimento institucional representa para os adolescentes, uma experiência traumática, já que, na maioria dos casos houve ruptura do passado, pois a família viveu uma crise que culminou em separação e em seu consequente acolhimento. Isso interrompeu o que lhe vinha sendo contado em um discurso de outro indivíduo significativo. Porém, seu trajeto identificatório precisa continuar e o discurso narrado torna-se de fundamental importância, pois foi nele a grande ruptura
A noção de identidade narrativa de Paul Ricoeur, “coloca a identidade como uma trajetória que desliza na temporalidade de um relato, onde a história de cada um, contada em forma de trama, é o que confere sentido à vida do sujeito”.
O sujeito então precisa contar com as suas memórias. Dentro da Instituição, no entanto, essas memórias têm lacunas causadas pela ruptura traumática do discurso no momento do ingresso na Instituição.
Sabemos através do estudo da Neurociência que cada vez que evocamos uma memória podemos excluir ou agregar algo.
A história que vinha sendo contada através de pai, mãe, irmãos, avós e todos os outros membros do seu sistema familiar, passa agora para as mãos de técnicos e atendentes. Muitas vezes a criança e/ou adolescente não sabe mais de sua história, pois essa não lhe pertence mais, pertence, sim, ao Fórum, às secretarias e ainda, às possibilidades de atendimento na comunidade através de órgãos como Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, Conselhos Tutelares, etc. Muitas vezes crianças e adolescentes, para preencher as lacunas deixadas em suas histórias, mesclam fantasia e realidade, na tentativa de dar continuidade à narrativa de si próprio, situação que, às vezes lhes deixa com a pecha de mentirosos.
Novamente devemos ter com os nossos filhos adotivos uma escuta imparcial, sem julgamentos, sem críticas, ajudando-os a formar uma nova história e uma nova identidade a partir da convivência em nossa família, no seio amoroso de nossos lares.
Nossos Filhos
De entranhas longínquas vieram
A mamar no vazio da dor
Perdas e danos nos sonhos,
No corpo, na alma e no amor.
Com histórias tão diferentes da minha
Chegaram para mamar o fluido de um coração
Buscando ávidos o sustento, o amparo, a direção.
Marcando suas vidas, um abandono
Que é tarefa nossa lenir
Com afeto, aconchego e segurança
Sabemos que é o caminho a seguir
Assim se deu um encontro,
Na interseção dos desejos,
A maternidade criada
Só no silêncio dos beijos.
REFERÊNCIAS
1- HORNSTEIN, Luis. Autoestima narcisimo y valores sociales e identidade. Buenos Aíres: Fondo de Cultura Económica, 2011
2 – CARVALHO, Márcia Maria S. Lopes de. A Historinha Bonitinha de Maria Estrelinha. São Paulo: EDICON, 1997
3 – RICOEUR, Paul. Soi-même comme um autre, París, Seuil 1996
4 – CARVALHO, Márcia Maria Silva Lopes de. Para fazer um’adoção vai precisar de muito açúcar – EDICON, 1997